Uma segunda chance para Coringa (às vésperas de “Delírio a Dois”)

Pedro Antonio
5 min readOct 4, 2024

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A já icônica dança na escadaria (Foto: Warner Bros. Pictures/ Divulgação)

Assisti a Coringa poucos dias após sua estreia em 2019, já em meio ao frenesi que se formou imediatamente com o lançamento do filme. As hipérboles iam de “melhor filme do ano” a “melhor adaptação de quadrinhos de todos os tempos” e não que qualquer uma dessas declarações devam ser levadas a ferro e fogo, mas elas no mínimo despertam certa curiosidade e para ser capaz de concordar ou discordar, eu precisava assistir. Foi o que eu fiz numa segunda-feira livre e ao final da sessão, pro bem ou pro mal, me sentia apático. Logo eu, tão acostumado a me empolgar com super-heróis, enxerguei ali apenas mais um filme pouco interessante.

Todo o discurso em volta, porém, não correspondia à minha opinião. Sempre houve quem discordasse da aclamação ao redor do longa, que viria a ter 11 indicações e duas vitórias no Oscar do ano seguinte, mas mesmo nesses casos, os dissidentes apresentavam reações apaixonadas, raivosas. Como muitas vezes é o caso, estar no meio do caminho era solitário, o que me levava a tentar justificar para mim mesmo e para outros em várias conversas que meu erro foi ir ao cinema no dia seguinte ao Rock in Rio. “Talvez o filme não seja realmente medíocre, eu que estava de ressaca de Imagine Dragons e não consegui aproveitar como deveria”.

Apesar de não ter fortes reações ao conteúdo da obra, me irritou como aos poucos o filme foi sendo apropriado por grupos que justificam sua frustração e misoginia sob o discurso de serem “injustiçados”. A cada dia aparecia alguém dizendo se identificar com o protagonista interpretado por Joaquin Phoenix, vendo-o como um exemplo do que poderia acontecer se os rejeitados exercessem vingança contra uma sociedade opressora. Uma infame resenha viral do Letterboxd, apesar de cômica, ilustra bem: “Este filme é meu Pantera Negra. Ele me empoderou”. É verdade que uma vez no mundo, a arte está aberta a interpretações que podem ser inimagináveis ao autor, mas esses grupos não extraíram tal mensagem do vácuo, ela estava lá e não era difícil de enxergar.

"Este filme é meu Pantera Negra. Este filme me empoderou. Ele me ajudou a superar minha rejeição de uma fêmea conhecida como Verônica que prefere namorar um Chad a um verdadeira cavalheiro que a trataria bem…"

Tal sentimento de que o longa era um instrumento daqueles que mais desprezo me causou bastante resistência a dar a ele uma segunda chance, uma revisita dessa vez sem Rock in Rio e sem cansaço para justificar. Uma boa motivação foi a aproximação da sequência, que ganhou o subtítulo Delírio a Dois e o reforço de Lady Gaga no elenco. Posso não ser um grande defensor de Coringa, mas defendo que o dever de casa de reassistir ao filme anterior antes de ir ao cinema ver sua sequência pode engrandecer qualquer experiência, e foi o que fiz, tentando me influenciar o mínimo possível por todos os discursos que surgiram nos anos desde seu lançamento.

Evidentemente, tanto meu repertório quanto vivências evoluíram bastante em cinco anos, mas a verdade é que minha avaliação sobre Coringa pouco mudou. Os aspectos positivos de antes continuam bons e o que era ruim segue assim ou piora. O longa de Todd Philips é uma verdadeira lição em ambientação. Por se passar durante uma greve de profissionais de limpeza, Gotham (mais Nova York setentista do que nunca) é cheia de sacos de lixo pelas ruas, e com uma fumaça que praticamente cheira através da tela. A trilha sonora ganhadora do Oscar de Hildur Guðnadóttir só realça essa atmosfera de podridão e decadência que se estende da cidade a Arthur e vice-versa.

O que é construído a partir disso, porém, é onde mora o problema. Coringa é um filme com uma bela casca, mas que não tem nada realmente relevante para dizer sobre os tópicos que aborda. Arthur Fleck é retratado como um pária desde a primeira cena, que termina com ele humilhado no chão, mas não há um sentimento de progressão na sua suposta libertação e transformação no Coringa. Isso porque a trama tenta se dividir em três, a do garoto atrás da verdade sobre sua paternidade, do comediante fracassado e do homem que sofre com transtornos mentais e culpa a sociedade por sua condição.

Todos os enredos se encaminham para o clímax durante a participação de Fleck no talk show do Murray, personagem de Robert DeNiro, que o consagra como Coringa. Ali, Arthur desconta suas frustrações como comediante, por ter crescido sem pai, pelos abusos de sua mãe e principalmente pela forma como ele repete várias vezes que a sociedade o trata. Na grande cena do filme, Phoenix mostra por que teve sua atuação merecidamente reconhecida com um Prêmio da Academia. Entretanto, o caminho para que tal momento fosse possível é, no mínimo, questionável.

Para que Arthur fosse convidado para seu programa de televisão favorito, foi necessário que uma fita com a gravação do seu stand-up num pequeno clube chegasse ao apresentador e “viralizasse” em plenos anos 80, o que parece forçar uma lógica contemporânea num cenário onde não cabe. Outros exemplos de uma suspensão exagerada de descrença estão presentes por todo o roteiro, como os desdobramentos com a situação com a placa de rua e todo o dilema da paternidade de Fleck. Esse último em especial parece uma tentativa desajeitada de oferecer alguma conexão mais forte aos quadrinhos, origens que o filme constantemente rejeita, que não funciona.

Falta ligação com os quadrinhos, mas sobram referências a duas obras de Scorsese em início de carreira, Taxi Driver e especialmente O Rei da Comédia, não à toa De Niro, estrela dos dois longas, está presente. Todd Philips mostra admirar o trabalho do diretor e procura emular vários de seus trejeitos, como a iluminação e a jornada de Arthur sendo uma versão deturpada dos dois protagonistas. Sendo assim, o título Coringa parece mais colado como um selo por cima de uma história reciclada do que justificado como uma interpretação do icônico vilão.

O selo funcionou, garantindo o grande sucesso nas bilheterias, o que prontamente demanda uma sequência segundo as regras de Hollywood. E é essa continuação, agora um musical e contando com a mesma equipe criativa, que estreia esta semana. Talvez com esse novo capítulo, eu finalmente me conecte com a visão de Philips sobre o “Coringa”, vá além da apatia e de fato me empolgue com a trajetória do personagem, tudo que, mesmo depois de duas chances, não fui capaz de alcançar com o primeiro. Ou talvez seja novamente apenas mais um filme que não vai me gerar fortes reações. Para ter essa resposta, apenas com uma visita ao cinema nos próximos dias.

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Pedro Antonio

Apaixonado por filmes, viciado em livros, consumidor voraz de batata frita. Jornalista, professor e sonhador nas horas vagas