Um clássico reinventado: As coisas mais legais do mundo em “Planeta do Tesouro”

Pedro Antonio
5 min read2 days ago

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Capa do DVD de 'Planeta do Tesouro'

Tenho pouca precisão sobre quando o DVD de Planeta do Tesouro chegou às minhas mãos, sei apenas que foi um dos primeiros filmes que possuí nessa mídia que ainda era muito recente na época. Àquela altura, já tinha rebobinado e assistido várias vezes às fitas de Tarzan e Monstros S.A., mas assistir a Planeta trazia algo novo. Além de ser uma experiência mais moderna, com mais possibilidades, envolvia também mais responsabilidade, afinal, manusear um disco requeria mais cuidado do que um videocassete. De uma forma boba, fazia com que eu me sentisse um pouco mais crescido.

Sempre foi isso que o filme representou para mim, uma porta para outra etapa da infância, a fase da criança inconformada por ter a idade que tem, a vontade de se desprender das amarras e desbravar o mundo. Mesmo que exemplos como O Corcunda de Notre Dame, outro favorito, já apresentassem alguns temas mais maduros, Planeta do Tesouro tinha voos radicais em prancha solar, tinha canções de John Rzeznik dos Goo Goo Dolls, isso já antes de eu conhecer e me fascinar por Linkin Park, tinha aventura e fantasia. Todos os elementos que me enchiam os olhos na época e ainda hoje.

A trama acompanha Jim Hawkins, que cresceu ouvindo contos sobre o Capitão Flint que, em algum lugar nos confins do universo, teria escondido o “butim de mil galáxias”, o lendário tesouro do título. Até que, por uma série de circunstâncias, Jim acaba tomando posse do mapa com as direções para esse tesouro e embarca numa aventura para encontrá-lo, tornando-se ele próprio parte da lenda. Claro que ele não é o único atrás do ouro, já que trata-se de uma estória de piratas que antecede em alguns meses Piratas do Caribe no cinema, e inclusive conta com dois dos mesmos roteiristas.

A animação dos estúdios Disney é comandada por John Musker e Ron Clements, de Aladdin e A Pequena Sereia, e adapta o clássico A Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson. Enquanto o romance se passa no século 18, aqui a proposta é misturar o visual de época com conceitos de ficção científica seguindo uma regra que 70% do que está em tela teria um aspecto clássico, enquanto 30% iria por uma veia mais futurista. Assim, navios são espaçonaves e pernas de pau e tapa-olhos são substituídos por membros biônicos, basicamente a maior junção de tudo que é mais atrativo para um jovem garoto. Um contraste que não deveria funcionar, mas funciona.

O ciborgue John Silver, com partes robóticas desenvolvidas por CGI (Foto: Disney/ Reprodução)

A união entre moderno e tradicional se estende às técnicas usadas na animação. Apesar de se manter majoritariamente como um desenho feito a mão, é empregado aqui um extenso e bem-vindo uso de computação gráfica. Não há exemplo melhor que o ciborgue John Silver, que tem seus membros mecânicos animados em 3D enquanto sua parte orgânica mantém a textura do 2D. Se anos depois, nos filmes de Aranhaverso, personagens animados por técnicas diferentes viriam a integrar a mesma cena, aqui a variedade de métodos compõem membros de um mesmo corpo e se misturam de maneira quase imperceptível.

Planeta do Tesouro também inovou no uso da tecnologia Deep Canvas (tela profunda), que consiste em dar um efeito tridimensional às pinturas que compõem os panos de fundo do longa. Foi o que tornou possível cenas como a incursão no espaço com baleias, criando uma imersão de causar inveja até a James Cameron. Por conta de mudanças no direcionamento do estúdio, a técnica não foi expandida para muitos filmes, sendo Tarzan seu único outro exemplar notável, para qual o software foi desenvolvido e usado pela primeira vez. É um aspecto artístico que conecta dois filmes tão importantes para mim, ainda que eu nem imaginasse isso quando criança.

Jim admira as baleias espaciais (Foto: Disney/ Reprodução)

Para além de toda essa exuberância, que é grande parte do encanto, o desenho cativa pelo seu personagem principal. Jim Hawkins é o típico jovem rebelde como era retratado nos anos 90 e 2000, mas em vez de um skate, ele saía por aí quebrando regras em sua prancha solar, apenas para sentir o vento nos cabelos e causar encrenca com a polícia. Eu, que ainda não tinha chegado a essa fase da vida, achava que era isso que significava crescer, ir contra tudo e contra todos e fazer o que quer quando desse vontade. Aprendi, assim como Jim, que crescer requer, acima de tudo, responsabilidade e por muitas vezes justamente abrir mão do que se quer para fazer o que é certo.

O constante dilema entre o que se deseja e o que é certo é ilustrado na relação do jovem com Silver, centro emocional do filme. Os dois desenvolvem um laço de pai e filho e Jim, ele próprio abandonado por seu pai, vê no velho pirata alguém bronco, mas que o oferece, além das broncas, validação. Quando seus interesses se cruzam, porém, a amizade é posta em xeque e é preciso escolher qual sentimento seguir, ganância ou afeto. O exemplo de Silver, ora positivo e ora negativo, serve tanto para Jim aprender o que quer ser quanto para criar certezas sobre aquilo que não vai fazer.

Ao final, o garoto traça seu próprio curso, o que o leva de volta para casa, não com grande parte do tesouro, mas com um abraço para sua mãe e muito aprendizado na bagagem. Fazendo diferente do seu pai e mesmo de Silver, Jim deixa que sua aventura termine onde começou e cumpre a promessa que fez à Sra. Hawkins, que voltaria e seria motivo de orgulho. Sai de casa menino, mas retorna como um homem e é visto como tal não através de fortuna, mas por demonstrar amadurecimento. Aqui, como num bom conto de piratas, o verdadeiro tesouro são as lições que aprendemos pelo caminho, mas também é ter para onde voltar quando o caminho chega ao fim.

Planeta do Tesouro está longe de ter o mesmo prestígio dos seus contemporâneos de estúdio. Sua bilheteria foi ínfima e como resultado, para o bem ou para o mal, nunca angariou uma sequência, série de TV ou remake em live-action e mesmo no Disney+, ele só foi integrar o catálogo meses depois do lançamento. Salvo poucas exceções, comentar sobre ele com os amigos é sempre ouvir um “nunca ouvi falar”. Com sorte, o filme segue vivo nos corações e memórias daqueles a quem impactou com sua grande mistura das coisas mais legais do mundo. É um tesouro da Disney que muitos até hoje podem não enxergar, mas ainda está aqui.

Texto disponível em: https://www.revistanostalgia.com/post/um-cl%C3%A1ssico-reinventado-as-coisas-mais-legais-do-mundo-em-planeta-do-tesouro

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Pedro Antonio

Apaixonado por filmes, viciado em livros, consumidor voraz de batata frita. Jornalista, professor e sonhador nas horas vagas